Mágoa
Mágoa, está para lá da tristeza, da saudade, do desejo de lutar pelo que já se perdeu, da raiva de não ter o que mais se queria, da pena de se ter deixado fugir um grande amor, por ser demasiado grande.
Primeiro grita-se, barafusta-se, soluça-se em catadupas, planeia-se uma estratégia de recuperação, sente-se os solavancos e come-se sem mastigar num torpor raivoso e revoltado.A vida corre mais depressa que nós, passa-nos por cima e os dias comem-se uns aos outros.Só queremos que o tempo corra de modo a apaziguar-nos a dor e acalmar os papos nos olhos.
Depois,é o pós-guerra, a rendição, a entrega das armas e a sentença de um tribunal marcial interior em que os juízes são a vida e o réu é o que fizemos dela.Limpam-se os destroços, enterram-se os mortos,tratam-se os feridos que são as nossas feridas, feitas de saudade, desencontros, palavras infelizes e atitudes insensatas, medos, frustrações e tudo o que não foi dito.Há quem durma com antigos "amores",há quem tome calmantes ou parta para um sítio turisticamente apatecível.O pior é quando lá se chega, apetece tudo menos lá ficar. Percebemos que não há longe nem distancia para a dor e que nenhum amante, amigo, mãe, irmão, droga ou bebida mata a saudade do que já fomos ou de quem já tivemos nos braços.
A Mágoa chega então, quando o cansaço já não nos deixa sentir mais nada.É silenciosa e matreira, instala-se sem darmos por ela, aloja-se no coração e começa a deixar sinais aqui e ali dentro de nós. A pouco e pouco sentimos que já não somos a mesma pessoa.As cicatrizes podem esbater-se com o passar do tempo e ser habilmente remendadas com golpes de plástica, mas ficarão para sempre debaixo dos excertos que fazemos á Alma. O cansaço mata tudo, a raiva de não termos quem tanto amámos, a fúria de não sermos donos da nossa vontade, o orgulho ferido de termos perdido quem mais queríamos.Só não mata a saudade e a vontade de sonhar que talvez um dia possamos mudar novamente e libertar-nos de nós mesmos e do sofrimento tão grande quanto involuntário, tão patético quanto verdadeiro.
Ás vezes, quando a mágoa é enorme e sufoca, vegetamos em silêncio para que ela não nos coma. Fingimos estar tudo bem, rimos de nós próprios perante os outros e até mesmo perante o "outro" que vive dentro de nós.Tornamo-nos espectadores da nossa dor. Afastamo-nos de nós, do que somos, daquilo em que acreditamos.No fundo estamos a desistir, como quem volta atrás porque tem medo do escuro, vencidos pela desilusão, cansados de esperar que o Mundo pare e se lembre de nós. Mas o Mundo não pára, nada pára, a vida foge, os dias atropelam-se, e, é preciso continuar a vive-los mesmo com dor, mesmo com Mágoa.Pelo menos a Mágoa magoa e faz-nos sentir vivos, arde no peito e no orgulho, mas a pouco e pouco vai matando a dor e torna-se a nossa companheira mais próxima, que nos vai protegendo da tristeza, que se vai consumindo como uma vela esquecida num presépio abandonado, que uma brisa ou um novo sopro de vida um dia apagará.
Mas isso só será possível quando conseguirmos ESQUECER.